O Grande Escândalo
No zoológico do Bronx, em Nova York, há um grande pavilhão especialmente dedicado aos primatas. Lá é possível ver os chimpanzés, gorilas, gibões e muitos macacos do novo e do velho mundo. Chama a atenção, porém, que no fundo existe uma jaula separada, com fortes grades. Quando nos aproximamos, vemos uma inscrição que diz: “O primata mais perigoso do planeta”. Ao olhar por entre as grades, vemos com surpresa a nossa própria cara: o letreiro esclarece que o homem já matou mais espécies que qualquer outra espécie conhecida. De observadores, passamos a observados (por nós mesmos). Mas o que vemos?
O momento de reflexão diante de um espelho é sempre muito peculiar, por que nele podemos tomar consciência do que, sobre nós mesmos, não é possível ver de nenhuma outra maneira: como quando revelamos o ponto cego, que nos mostra a nossa própria estrutura, e como quando suprimimos a cegueira que ela ocasiona, preenchendo o vazio. A reflexão é um processo de conhecer como conhecemos, um ato de voltar a nós mesmos, a única oportunidade que temos de descobrir nossas cegueiras e reconhecer que as certezas e os conhecimentos dos outros são, respectivamente, tão aflitivos e tão tênues quanto os nossos.
Essa situação especial de conhecer como se conhece é tradicionalmente esquiva para nossa cultura ocidental, centrada na ação e não na reflexão, de modo que nossa vida pessoal é, geralmente, cega para si mesma. Parece que em alguma parte há um tabu que nos diz: “É proibido conhecer o conhecer”. Na verdade, é um escândalo que não saibamos como é constituído o nosso mundo experiencial, que é de fato o mais próximo da nossa existência. Há muitos escândalos no mundo, mas essa ignorância é um dos piores.
Talvez uma das razões pelas quais tendemos a evitar tocar as bases de nosso conhecer, é que isso nos dá uma sensação um pouco vertiginosa, dada a circularidade resultante da utilização do instrumento de análise para analisar o próprio instrumento de análise: é como se pretendêssemos que um olho visse a si mesmo. Na figura, que é um desenho do holandês M.C. Escher, essa vertigem está representada com muita nitidez, por meio das mãos que se desenham mutuamente, de tal modo que nunca se sabe onde está o funcionamento de todo o processo: qual é a mão “verdadeira”?
De modo semelhante, embora tenhamos conhecimento que os processos envolvidos em nossas atividades, em nossa constituição, em nossa atuação com seres vivos, formam o nosso conhecer, propomo-nos a investigar como conhecemos olhando para essas coisas por meio desses processos. Não temos outra alternativa, pois há uma inseparabilidade entre o que fazemos e nossa experiência do mundo, com suas regularidades: seus lugares públicos, suas crianças e suas guerras atômicas.
O que podemos fazer – e que o leitor deve tomar como tarefa pessoal – é perceber tudo o que implica essa coincidência contínua de nosso ser, nosso fazer e nosso conhecer, deixando de lado nossa atitude cotidiana de pôr sobre nossa experiência um selo de inquestionabilidade como se ela refletisse um mundo absoluto.
Por isso, na base de tudo o que iremos dizer estará esse constante dar-se conta de que não se pode tomar o fenômeno do conhecer como se houvesse “fatos” ou objetos lá fora, que alguém capta e introduz na cabeça. A experiência de qualquer coisa lá fora é validade de uma maneira particular pela estrutura humana, que torna possível “a coisa” que surge na descrição.
O momento de reflexão diante de um espelho é sempre muito peculiar, por que nele podemos tomar consciência do que, sobre nós mesmos, não é possível ver de nenhuma outra maneira: como quando revelamos o ponto cego, que nos mostra a nossa própria estrutura, e como quando suprimimos a cegueira que ela ocasiona, preenchendo o vazio. A reflexão é um processo de conhecer como conhecemos, um ato de voltar a nós mesmos, a única oportunidade que temos de descobrir nossas cegueiras e reconhecer que as certezas e os conhecimentos dos outros são, respectivamente, tão aflitivos e tão tênues quanto os nossos.
Essa situação especial de conhecer como se conhece é tradicionalmente esquiva para nossa cultura ocidental, centrada na ação e não na reflexão, de modo que nossa vida pessoal é, geralmente, cega para si mesma. Parece que em alguma parte há um tabu que nos diz: “É proibido conhecer o conhecer”. Na verdade, é um escândalo que não saibamos como é constituído o nosso mundo experiencial, que é de fato o mais próximo da nossa existência. Há muitos escândalos no mundo, mas essa ignorância é um dos piores.
Talvez uma das razões pelas quais tendemos a evitar tocar as bases de nosso conhecer, é que isso nos dá uma sensação um pouco vertiginosa, dada a circularidade resultante da utilização do instrumento de análise para analisar o próprio instrumento de análise: é como se pretendêssemos que um olho visse a si mesmo. Na figura, que é um desenho do holandês M.C. Escher, essa vertigem está representada com muita nitidez, por meio das mãos que se desenham mutuamente, de tal modo que nunca se sabe onde está o funcionamento de todo o processo: qual é a mão “verdadeira”?
De modo semelhante, embora tenhamos conhecimento que os processos envolvidos em nossas atividades, em nossa constituição, em nossa atuação com seres vivos, formam o nosso conhecer, propomo-nos a investigar como conhecemos olhando para essas coisas por meio desses processos. Não temos outra alternativa, pois há uma inseparabilidade entre o que fazemos e nossa experiência do mundo, com suas regularidades: seus lugares públicos, suas crianças e suas guerras atômicas.
O que podemos fazer – e que o leitor deve tomar como tarefa pessoal – é perceber tudo o que implica essa coincidência contínua de nosso ser, nosso fazer e nosso conhecer, deixando de lado nossa atitude cotidiana de pôr sobre nossa experiência um selo de inquestionabilidade como se ela refletisse um mundo absoluto.
Por isso, na base de tudo o que iremos dizer estará esse constante dar-se conta de que não se pode tomar o fenômeno do conhecer como se houvesse “fatos” ou objetos lá fora, que alguém capta e introduz na cabeça. A experiência de qualquer coisa lá fora é validade de uma maneira particular pela estrutura humana, que torna possível “a coisa” que surge na descrição.
In: "A Árvore do Conhecimento" - Humberto Maturana e Francisco Varela, ed. Palas Athena.
3 Comentários:
Às 9:11 AM , Anônimo disse...
"É possível acreditar nas teorias de Darwin e em Deus ao mesmo tempo pois se no começo dos tempos Deus escolheu usar o mecanismo da evolução para criar a diversidade de vida que existe no planeta, para produzir criaturas que à sua imagem tenham livre-arbítrio, alma e capacidade de discenir entre o bem e o mal, quem somos nós para dizer que ele não deveria ter criado o mundo desta forma"- Francis Collins, Biólogo Americano - Diretor do Projeto Genoma
O texto me remete tanto à evolução como a conceitos de valores e ética. Pois muito que bem… se você estiver caminhando à beira do rio e vir uma pessoa se afogando e decidir ajudá-la, mesmo que isto coloque em risco a sua vida, de onde vem esse impulso? Nada na teoria da evolução pode explicar a noção de certo e errado, a moral, que parece ser exclusiva da espécie humana. Essa mesma espécie que, ao analisar a natureza, apriziona e domina tudo que nela há de disponível e não só isso mas desde os séculos dos séculos que o homem procura imitá-la, mesmo sem tentar compreender. Assim, o homem se confunde com o próprio deus (seja ele qual for), sendo finalmente senhor absoluto de todas as coisas. Porém… não há um "mundo absoluto". Não há sequer um deus absoluto. Não há, assim, um homem absoluto. E cada um escolhe o seu caminho. E cada um escolhe também o seu espelho. É, de novo, uma questão desse tal de livre-arbítrio.
Às 12:49 PM , Puta Véia disse...
Janis, sobre a teoria da evolução, vejo que o impulso de ajudar tem tudo a ver com o senso de sobrevivência, pois como vivemos em comunidade, a ajuda ao outro pode retornar como a ajuda do outro à você, logo uma sobrevivência maior e a perpetuação da espécie. Temos que entender que o bicho homem tem suas particularidades na teoria evolutiva, e que uma delas está relacionada com os seus pensamentos... em especial o medo que irei posteriormente dissertar melhor.
Armless, no começo pensei que o texto fosse seu, mas pra minha frustração, era de um outro filosofinho qualquer, mas imagino que case perfeitamente com suas idéias e o que é mais estranho, casa com as minhas e provavelmente a dos outros colaboradores deste blog.
Mas o mais estranho é que se tivessemos lido isso a 3 anos atrás, provavelmente ninguém daria a mesma importância que estamos dando agora.... estamos todos nessa fase mais reflexiva, interpretativa, de auto-conhecimento. O que nos faz pessoas melhores, concordo, mas também mais chatas. Cada novo dia me sinto como um adulto mais chato, sem as impolgações e vontades de adolescente. Simplesmente estamos crescendo, e tenho eu que ver que isso é benéfico
Às 10:04 PM , Burocrata disse...
Intrigante esse texto. Acho que nunca havia atentado a esta faceta do "auto-conhceimento" e agora que o fiz comeco a enxergar como meu "instrumento de analise" pode ser tendencioso. Me lembro de comentar com alguém que meu medo é decorrente de uma analise de previsao de consequencias muito abrangente e por isso mesmo assustadora, esse alguém me disse que tenho o medo por que simplesmente teno medo. Aceitei. Mas lendo este texto repenso novamente sobre isso e também na maneira como enxergo o "exterior"...
Muito bom, obrigado por ter postado isso.
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